Medicina de Emergência: Por que eu?

Jule Santos
9 min readNov 10, 2020

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- Eu amo infarto!

Eu sei, eu sei… essa é uma frase estranha… talvez até um pouco sensacionalista. Geralmente as pessoas ficam desconfortáveis quando digo isso toda entusiasmada…. Lembro quando disse isso pela primeira vez, cheia de energia e brilho nos olhos, meu ex-noivo, me olhou meio incomodado:
- Você pode falar isso mesmo? — Ele se perguntava se era apropriado para um médica gostar que pessoas infartassem.

Bom, eu não tenho nada contra as pessoas. Muito pelo contrário, trabalho incessantemente para que elas possam sobreviver um pouco mais. E além do mais essa frase é verdade: eu sou muito apaixonada por infartos. E como vocês bem sabem, a verdade liberta.

- Eu amo infarto!
Eu gosto da energia por trás do quebra-cabeça. Quando o paciente chega e logo consigo reconhecer a fácies de dor, a posição do corpo, a mão sobre o tórax em sinal de aperto, a cor da pele, o suor, a temperatura da pele, o tipo de dor, as comorbidades, os fatores de risco, e olha esse ECG!

- Eu sei isso! E sei tratar! E agora o paciente vai melhorar rápido! — E quando funciona. — Me sinto a rainha dona do universo! 1 pra mim, zero pro infarto!

Simplesmente amo essa sensação. Essa adrenalina. Eu amo diagnosticar e tratar infartos.

E foi por isso que escolhi a Medicina de Emergência.

Mas nem tudo são flores, não posso mentir.
A Medicina de Emergência por si só, pode ser muito danosa. Muito pesada. Mortes que não conseguimos evitar. Diagnósticos de doenças incuráveis.

Lembro da família que trouxe a mãe por confusão mental, o que mais me chamou a atenção era que estavam todos calmos, mas de uma forma triste, talvez sem energia:
- Será que é ansiedade? Talvez um AVC, não é doutora? Estamos passando por tanto coisa já… nem sei o que mais podemos suportar… - A filha me dizia enquanto organizávamos tudo para ir para a tomografia.

E assim que vi a imagem: Era um tumor cerebral.
Era ruim que fosse um AVC para aquela família que já estava lidando com tantos problemas, e de repente eu teria que falar que bem, era muito pior do que um AVC que ninguém queria, provavelmente era um câncer em seu estágio mais avançado…

E nunca vou esquecer a expressão de tristeza, no meio do corredor, na madrugada, o hospital quase vazio, em silêncio, e a gente com o mesmo sentimento: preferia o AVC...

É pesado. Há estudos mostrando claramente as consequências danosas de se lidar constantemente com o estresse pós-traumático dos outros. E também, claro, dos nossos. A dor de ver morrer, mesmo quando se fez tudo possível e não faltou nenhum medicamento.

E somando a isso um sistema de saúde corrosivo, a Medicina de Emergência pode te esgotar.

E o sistema me atingiu em cheio. E esgotei. Estava claro: irritação, estresse, descontentamento, um certo grau de despersonalização, pessimismo constante, três brigas em uma semana: burnout.

Parecia que tudo o que eu estava fazendo era sem sentido. Enquanto eu aprendia a ser a melhor médica que eu poderia ser: estudando, viajando, quando eu voltava era para um ambiente estagnado, cheio de pessoas adoecidas pelo sistema, tão ou mais pessimistas que eu… E mais mortes injustas. E problemas sem fim de falta de recurso e muito demanda. Eu tinha idéias e tentava ser otimista, eles riam na minha cara e me tratavam como ingênua e boba. Atender infartos deixou de ter aquela emoção e passou a me causar sofrimento. Porque eu não tinha mais para onde encaminhar o paciente, ou toda vez que eu precisava ligar, o médico do outro lado me tratava mal, ou porque ele não confiava em mim, ou porque o sistema tinha contaminado ele contra o paciente. Ele defendia os gastos do hospital. E eu me via numa luta dolorida. E sem sentido, mesmo quando dava certo.

Transferir um paciente para o melhor cuidado, depois de ter gritado com 3 pessoas no telefone e usado chantagem emocional: "e se fosse seu pai", não é prazeroso.

Cada paciente era mais dor que alegria, mesmo quando dava certo.
E percebi isso, eu estava doente. Parecia que eu tinha desaprendido a ter esperança. E pra piorar, não sei mentir.

- Eu vou morrer doutora?
Meu rosto inteiro dizia sim. Apesar da minhas palavras serem:
- Não pense nisso agora. Vamos cuidar de você.
Era só o primeiro diagnóstico de um tumor, mas eu já tinha visto aquela cena tantas vezes… ia pra enfermaria com pedido de todos os exames de rastreio e avaliação da oncologia, mas a oncologia só recebia para avaliação com o resultado da biopsia e histopatológico… quem ia fazer a biopsia? não tem especialistas no hospital… a cirurgia avalia e orienta encaminhar para um super especilista, o pedido entra no sistema, a rede responde que não tem… volta o pedido pro cirurgião geral, que orienta encaminhar pro radiologista intervencionista, único da rede, que está de férias, mas marca para fazer a biospia em quinze dias… e os exames ainda não foram feitos, a máquina quebrou, não é urgência, volta o paciente pra sala vermelha, com sepse pulmonar, grave… intuba porque não tem parecer da onologia esclarecendo se o tumor tem tratamento ou não… não sai vaga de UTI, porque as poucas vagas são reservadas para quem tem mais chance de sobreviver… e o paciente morria uns dois meses depois, sem nem ao menos ver o resultado da biopsia… E eu ia dar a notícia e preencher a DO.

- Fizemos tudo o possível… — eu dizia, e então em casa eu remoía a mentira. Não era a minha mentira, era a mentira do sistema (fizemos tudo possível). Mas me sentia culpada, vencida, e amarga.

E deixei de acreditar no tratamento, antes mesmo de saber… Como uma médica pode ser médica, sem acreditar no trabalho que faz… sem ter esperança?

Então eu quis desistir várias vezes, quis largar a medicina, quis largar o hospital, quis largar… a medicina de emergência… e nunca achei que isso fosse acontecer comigo. Não comigo! Como assim eu? Eu era apaixonada pela Medicina de Emergência!?
E percebi que estava na beira do principio quando quis desistir de mim.

Respira fundo. Pede ajuda. Luta.

Ter perspectiva também te ajuda. E humildade. Viajei de novo, e vi outros mundos… Um mundo onde as pessoas não tinham um décimo do que nós tínhamos, mas tinham algo mais: se importavam… Um mundo que me mostrou que somos mínimos na medicina. Isso mesmo, nós médicos, somos pequenos demais no processo de cura, que a grande estrela é o corpo humano. E muitas vezes, ele melhora, apesar de nós. E por isso mesmo, quando ele não melhora, nossa culpa é mínima, se não houver negligência… É a doença e o corpo, e talvez um pouco de nós.

Aos poucos o processo da minha cura começou. Voltei para a terapia. E tenho amigos incríveis! Amigos virtuais, amigos presentes, amigos distantes, mentores, mentees, alunos, residentes, seguidores… Eu recebia carinho, compreensão e mensagens de encorajamento o tempo todo. A maioria das vezes sem querer, fruto daquela paixão que eu tinha plantado. Outras vezes porque pedi ajuda.

Não foi fácil e envolveu muitas recaídas, muito desespero, muita vergonha superada… Aos poucos, com determinação, um passo após o outro, usando empatia, conhecendo novas perspectivas fui melhorando… A cada pequena vitória, uma pequena, mas importante celebração.

Eu queria, desesperadamente, fazer sentido. Eu queria ter sentido.

Por que eu?

“A maioria das vezes, o fato de você se importar, é o suficiente.” Um dos conselhos mais acolhedores que já recebi. Foi como analgesiar uma dor intensa que eu nem sabia de onde vinha.

Nesse processo de cura, nessa busca desesperada para fazer sentido, recebemos uma criança em parada cardíaca, trazida por uma outra equipe médica. O paciente estava intubado no esofago e aquele médico não tinha visto. Reanimamos por mais de uma hora, e tive muito cuidado para encerrar os esforços, porque é sempre uma situação muito delicada com criança. Na hora do debriefing, estive preocupada em informar o médico da intubação incorreta, era importante que ele soubesse do erro para ter mais atenção no futuro, mas também era importante para mim que eu não o fizesse se martirizar, e eu jamais seria arrogante. Mas qual não foi a minha surpresa quando o médico deu de ombros e disse:
- Acontece né, doutora?

Ele não se importava, e aquele desdém quebrou meu espírito, e me transformou em ódio e desprezo. Eu queria massacrá-lo, amendrontá-lo, ameaçá-lo. Mas me senti fracassada mais uma vez, porque afinal, de fato, ele não se importava com nada do que eu falava…

E a família? O que ia adiantar eu transmitir o meu ódio para eles? Nada daquilo iria trazer o filho de volta.

Aquele médico poderia ser uma má pessoa, ou poderia estar em defesa tentando amenizar um erro, de fato, comum. O problema não era intubar errado, o problema era não identificar o erro imediatamente. O problema era não se importar… Minha cabeça não saia disso. E apesar de eu querer muito resposnsabilizar ele por seu próprio erro, eu jamais iria permitir que ele desse a trágica notícia aos pais.

Por que eu?

Respirei fundo, agradeci a equipe por todo o esforço, pedi que preparassem o corpo e fui até o lugar de espera. Me sentei ao lado do pai, e contei tudo o que fizemos tentando sanar a angústia, mas dando tempo para a compreensão.
- Não tinha mais o que fazer, eu sinto muito, mas ele morreu.

O pai fitou o chão por um tempo. A esposa estava grávida de 8 meses, ele me contou tentando entender o que deveria fazer. Então veio o pranto. Aguardei. Como dar sentido para aquela desgraça? Como eu vou aguentar continuar nesse plantão?
E então, ele me olhou verdadeiro:
- Obrigada doutora por tudo o que vocês fizeram.

E eu nunca vou esquecê-los. Porque era verdade, apesar de toda a tagédia, do filho que colocou um garfo na tomado, para um médico que não teve competência para resolver rápido um erro, para nossa incapacidade de reviver o filho, apesar disso tudo, a gente deu nosso melhor, a gente fez tudo, pensamos em todas as alternativas, tentamos o máximo que podíamos, porque a gente se importava com esperança, e mostramos isso para o pai. E isso aliviou um pouco a dor, e deixou claro para ele, que se houvesse uma chance naquele momento, a gente se importava o suficente para agarrar aquela chance… E então isso não me adoece mais.

Porque o foco está no que eu realmente posso fazer diante de todas as outras fatalidades da medicina, incluindo falta de recurso e negligência…

E então, aos poucos, com o passar dos dias, foi como o dia depois da tempestade, o mar amanheceu numa calmaria lindo.

Meus sentimentos se apaziguaram, redefini minhas responsabilidades diante da minha vida e as minhas escolhas, redefini minha motivação, minha ambição, meu propósito, re-ajustei minhas expectativas e encontrei um novo poder.

Não foi fácil e não foi “só querer”. Não foi simplesmente “parar de pensar nisso”. E ainda, de vez em quando, dói.

Enquanto eu melhorava tive a sorte suficiente de ver meu ambiente de trabalho melhorar. O espaço foi reformado, contrataram mais profissionais, reporam diversas medicações, e voltei para um lugar onde as pessoas estavam ansiosas para trabalhar comigo. Sentiam a minha falta, me mostrando que eu fazia a diferença. Então, aos poucos, aquela energia e aquele amor por atender emergências, voltou.

Mas ainda faltava lidar com o lado mais doloroso da Medicina de Emergência: as más notícias.

No começo da minha cura, entendi que precisava estar presente. Estar presente em todas as minhas tarefas. Não somos multi-task. Somos bons em priorizar e escalonar tarefas.

Intubaram um paciente idoso, muito doente e que agora aguardava vaga de UTI. A família estava ansiosa, querendo saber quais eram as chances exatas dele sobreviver.
Sabe, não existe as palavras perfeitas. Existe honestidade. Respeito. E empatia.

Eles me pediram para conversar com todos aos mesmo tempo, para que não houvesse quebra de informação. Aceitei.

A esposa do paciente, uma senhora já de idade avançada, sentava num banco desconsolada abraçada pelos netos. Os filhos estavam em pé, a rodeavam. Eu me sentei ao lado dela e apoiei delicadamente seu braço, com cuidado para não ultrapassar barreiras.

- Doutora, meu marido é um homem muito teimoso. Demais. Sabe, ele está doente há muito tempo. Mas não queria vim no hospital. Pensa num homem teimoso… Eu disse pra ele… Eu disse… Agora eu sei que é tarde. Ele está muito ruim, né doutora?
- Sim, está.
- Ele vai morrer? Pode me falar.
- Ele está muito grave, tem risco de morrer sim, mas no momento não podemos saber com certeza. Temos que esperar a resposta ao tratamento.

Eles fizeram mais algumas perguntas que respondi da mesma forma, olhando nos olhos, com paciência, presente. Esperei para ter certeza que não havia mais dúvidas. Ela me agradeceu, genuinamente. E então a abracei e disse a verdade:
- Estamos fazendo tudo o que podemos.

Eles pareceram satisfeitos em saber que nós nos importávamos. E naquele momento senti que fazia a diferença ali, e a dor para mim foi amenizada.

E onde estou hoje?

Eu amo infartos! Amo o olhar de maravilhamento dos alunos quando salvamos uma vida, amo ver a sensação de auto-realiazação dos resisdentes quando conseguem realizar um procedimento pela primeira vez. Amo a felicidade e energia da equipe inteira quando o paciente volta a ter batimentos cardíacos. Amo as peculiaridades de cada paciente, suas histórias, suas famílias e como elas me trazem sempre uma perspectiva diferente do mundo e da medicina. E eu amo aprender algo novo todo dia: E por isso a Medicina de Emergência.

Mas tem muita coisa do sistema que não posso mudar, não posso impedir que pessoas fiquem doentes, não posso nem mesmo garantir quem vai sobreviver, muito menos posso refazer as expectativas das famílias, mas posso mostrar que nos importamos. Esse é o meu diferencial. Esse é o meu sentido. Porque isso depende só de mim. E faz toda a diferença. E por isso, eu.

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