Foi tudo culpa do chinelo

Jule Santos
3 min readNov 22, 2020

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Eu estava toda atarefada, tinha acabado de avaliar seis pacientes graves, feito evoluções, prescrições, ligações, correções, interpretado exames, discutido casos, e terminava de fazer um acesso central, quando a porta do box se abriu:

— Cadê a doutora?

De baixo do gorro de caveiras rosas e da mascara eu surgi:

— Oi. Ah, como está o seu Joao? — Logo reconheci que era sua esposa. Esse paciente tinha acabado de subir para uma cirurgia de alto risco.

— Ele até que tá bem doutora, queria saber cadê chinelo dele.

Fiquei muda. Na verdade estava esperando um abraço apertado de agradecimento por ter feito aquele diagnostico, e tudo que ganhei foi “cadê o chinelo?”.

— Não faço a menor idéia!- Respondi perplexa.

Dia seguinte na hora da visita, eu respondia as duvidas dos parentes dos pacientes. Vinham ansiosos, uns cheios de saudades, outros de susto, outros de expectativas e outros de revolta. É uma parte muito cansativa do dia pra mim porque acabo que fico muito na defensiva.

— Então quer dizer que ele piorou? — Ela me perguntou meio decepcionada, meio insatisfeita, meio agressiva.

— Sim. — Respondi com pesar.

— Então ele chegou aqui só com uma convulsão, depois foi uma pneumonia e agora os rins pararam?

— Sim. — Engoli a seco.

— Então quer dizer, que aqui, ele só tá piorando?

Ei pera lá! Entendi a revolta, a tristeza, mas tinham vários mecanismo fisiopatológicos envolvidos aí, era a doença grave que o estava prejudicando! Mas como eu ia resumir tudo aquilo?

— Senhora, ele teve muitas complicações da própria doença que…

— Tudo bem. — Ela me cortou. — Quero saber cadê o cobertor que eu trouxe.

Perplexa.

Ela entrou revoltada no box:

— Cadê a médica?

Me virei assutada:

— Estou aqui. O que houve?

— Quero saber se a senhora sabe me dizer quantos enfermeiros estão escalados na medicação?

Emudeci.

— Porque tem um monte de paciente e só UMA enfermeira pra fazer a medicação, e ela já furou o meu filho inteiro! Furou todinho! E não pega a veia!

Eu realmente não sabia o que dizer:

— Bom, talvez seu filho tenha veias muito difíceis.

— Não tem não que eu sei. É que ela está la, toda nervosa, sozinha pra dar conta de tudo. É um absurdo!

— Minha senhora, eu não posso fazer nada com relação a isso. Não é o meu trabalho. Não contrato enfermeiros e não faço escalas.

Daqui a pouco vêm me pedir pra ajeitar o congresso nacional! A desigualdade social ou a economia! Gente, não é tudo culpa do médico! Pensei, meio amarga.

Chegava o final do plantão, paciente 24 anos, suspeita de morte cerebral, hora de falar com a família.

Muito choro.

— Mas doutora, ela tá chorando!

— Não é choro, é que ela acumula as lagrimas, pq nao está piscando… — ”mas que diabos estou falando?” pensei meio confusa, afinal todo liquido que acumula no olho, é lagrima, e não era choro?!…

E expliquei mais uma vez:

— Nós testamos as funções importantes (frisei “importantes”) que dependem do cerebro, como respirar, e ela não teve nenhuma reação. Ela não tá respirando sozinha, não tem mais nenhum estimulo cerebral. Só falta mais um exame para confirmar.- ESSES é que são os parâmetros que importam!! Pensei com certa arrogância e cansaço.

— Mas doutora, talvez o cérebro dela só ficou com uma sequela muito grave, mas não quer dizer que morreu todo. Porque ela tá chorando, né?

Fiquei sem palavras. A verdade é que não interessa quão profundo era o meu conhecimento sobre qualquer fisiopatologia, se eu não pudesse entender o simbolismo de tudo aquilo.

Porque cada um lida com a dor como pode. Cada um lida com o alívio como pode. Cada um lida com a raiva como pode. Cada um lida com o medo como pode.

Não era um simples chinelo, um simples cobertor, uma simples revolta pelo sofrimento do filho, não era mesmo uma simples lágrima. Era esperança. Era uma forma de desabafar. De aliviar. De perder o foco por um segundo.

Então coloquei a mão em seu ombro:

— Sim, vamos aguardar mais um pouco pra ver.

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