Jule Santos
4 min readNov 6, 2020

DOR

- E tem quanto tempo essa dor, dona Maria?
- Ah, uns dois anos doutora.

A emergencista dentro de mim se contorceu… É muito muito difícil segurar a expressão azeda: "2 ANOS? DO-IS A-NOS?"

Odiamos sentir dor. Dor é algo que tem que resolver logo. Dor é um sinal que nos mobiliza. Quando dói a gente tem que sair do lugar e ir resolver. Tomar um remédio. Ou uma cerveja. Ou ver um filme triste. Enfim, se drogar até anestesiar… A dor física incomoda por um motivo específico: precisa ser verificada, pra gente sobreviver.

- Mas dona Maria, a senhora tá com essa dor tem dois anos, a senhora já tinha feito algum exame antes?
- Não doutora. Eu não fui no médico não. Eu tomava uns remédios e aguentava.

Nós, médicos, nos especializamos em tratar dor, em investigar dor, em resolver dor, pra te ajudar a sobreviver. É difícil pra gente entender, nos dias de hoje, porque alguém demoraria tanto para ir atrás dessa ajuda. Às vezes dá uma irritação sabe… Não leve a mal. É que a maioria das doenças resolve melhor quando tratada no começo da dor. E também, somos especialistas na arrogância da nossa visão de mundo.

"Eu nunca ficaria 2 anos com uma dor dessas!
DOIS ANOS, dona Maria!"
Eu não disse isso a ela, mas não foi por humildade, foi porque eu tinha pressa. E partimos para a drenagem de tórax.

Ela chegou com falta de ar, com a oxigenação no sangue baixa, tínhamos que ser rápidos. A radiografia mostrou que parecia muito líquido no pulmão. Tiramos um pouquinho do líquido pra ver o que era, parecia pus. Fizemos uma tomografia e era muito líquido que vinha do esofago para o pulmão, de uma úlcera que virou um buraco… E tinha até restos de comida dentro do líquido no pulmão.

Eu me lembro da primeira vez que bati os olhos em dona Maria: câncer, pulou na minha cabeça.
É difícil controlar esses diagnósticos rápidos.
Ela estava muito emagrecida, fragilizada, desnutrida, parecia que ia quebrar a qualquer momento. Tinha uma fácies apática. Que era dor. Era pequenina, só da gente a olhar criava um instinto de defesa.

E também era trabalhadora rural. Serviço braçal. Então era forte ao mesmo tempo... Muito mais forte do que eu compreendi naquele momento.

No começo eu tive dúvidas se ela me entendia, porque mal me respondia. Mal me olhava. Parecia que mal vivia… Era a dor.

Começamos o procedimento. Coisa simples: colocar um dreno dentro do tórax, para tirar todo aquele líquido, aliviar a falta de ar e a dor, até que se decidissem o que fazer com aquela úlcera, que eu achava era cancer. Mas ainda bem, estive errada, descobri depois.

A gente limpou, anestesiou, fiz o corte, divulcionei o músculo, achei a costela, e ela permanecia em silêncio. Passei o dreno, com sucesso, que felicidade!

-Está acabando dona Maria. Está tudo bem? A senhora está com dor?
- SIM! — ela gritou.
E meu coração parou. Estremeci dos pés a cabeça. Que coisa desagradável que é infligir dor a alguém que não deveria. Não era para ela estar sentindo dor! Minha auto-defesa/ego veio num reflexo:
- Mas por que a senhora não falou?!
- Estou aguentando minha filha… — Ela respondeu contorcendo o rosto.

"Estou aguentando" ressoa em mim até hoje.

Não, não, não, me corrigi:
- Me desculpa dona Maria, eu deveria ter perguntado, não era para a senhora sentir dor. Vamos fazer um remédio melhor, tá bom? Vai passar.

Melhoramos a analgesia. Algumas horas depois, fui reavaliá-la, ainda me sentindo bem envergonhada. Ela dormia, finalmente, tranquila. O rosto estava completamente diferente, parecia até que sorria. A deixei descansar mais um pouco.

Voltei no final do plantão, agora eu ia ter algum tempo.
- Então dona Maria, me conta essa história direito. A senhora tá com essa dor tem uns dois anos, é? Tava tomando algum remédio?
- Eu sei que é difícil entender minha filha, — agora ela sorria, tentando até mesmo me compreender — eu moro lá no meio da roça. Bem lá longe mesmo. Não tem médico lá perto. Eles me levaram em um, tem uns três anos, pra fazer um exame, que passa um cabo por dentro da boca. Eu ia ter que ficar internada para tratar. Mas eu não podia.
- Tratar uma úlcera?
- Ah, não sei, minha filha.
- E por que a senhora não se internou?
- Por causa da menina.
- Da menina?
- Lá na roça tem um monte de homem. Tudo homen velho criado. E eu peguei essa menina para criar, que foi largada da mãe. Menina pequena. Eu não podia deixar ela lá sozinha, ela não tava criada. Ninguém ia cuidar dela. Então eu aguentei, porque eu também não podia morrer. Mas agora doutora, a dor foi aumentando, e eu não aguentei mais. A menina tá grande já, tem uns 12 anos, ela já pode se cuidar sozinha. E eu disse pra ela, olha menina, agora você tem que se cuidar porque eu não tô aguentando mais essa dor, e eu vou na cidade me internar, e pode ser que eu vou morrer, então você tem que se virar agora. E a menina ficou, e eu vim.